Por Andreas Kindel
Biólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
transportes@faunanews.com.br
A atual pandemia, que é tão persistente, perturbadora e destruidora – não por causa do vírus, mas pela nossa estupidez e dificuldade de assumir determinadas práticas e rejeitar determinados discursos -, não foi a primeira e não será a última.
Há inúmeras formas de reagir às lições potencialmente aprendidas. Uma das importantes discussões a serem feitas é: como lidar com o risco cada vez maior e mais diverso de novas pandemias acontecerem? Aumentando e priorizando a nossa capacidade de prevenção e detecção precoce? Aumentando a nossa adaptação e controle?
Não há dúvidas que os dois conjuntos de soluções necessitam ser perseguidos, assim como não deveria haver dúvida de que a prevenção e detecção precoce deveriam ser priorizadas. Se não por outras razões, simplesmente porque a prevenção é muito, mas muito mais barata! Talvez aí esteja um problema… Custa menos e por isso há menos interessados em abraçá-la como estratégia. Mas isso é outro papo e não será o ponto desse artigo.
Embora jamais deva ser usado como um argumento para não mitigar os atropelamentos, as carcaças espalhadas pelas nossas rodovias e ferrovias podem ser uma importante fonte de informações para a detecção precoce da circulação de novos e velhos patógenos em nossos ecossistemas. As rodovias, infelizmente, são os sistemas de amostragem de fauna silvestre “não propositalmente invasivo” (pois não exige que o observador capture ou abata o organismo alvo) mais representativo dos ecossistemas brasileiros. Não há razão alguma, obviamente, para implantar novas rodovias em áreas remotas da Amazônia para melhorar a representatividade. Muito pelo contrário. Mas também não há razão alguma para não estabelecer um programa coordenado, sistemático e contínuo de coleta de amostras biológicas das carcaças nas estradas já operantes.
Existe uma rede de empreendedores, consultores e pesquisadores distribuída em quase todo o território brasileiro coletando informações de animais atropelados. Essa rede de potenciais colaboradores, articulada com a rede de instituições de vigilância sanitária (centralizadas na Fiocruz, por exemplo), bem treinada e equipada, com protocolos claros e seguros de coleta, traria contribuições consideráveis a um sistema de detecção precoce de patógenos.
Para isso, a qualificação na preparação, armazenamento e envio de material e informações seriam atividades essenciais. Assim como o financiamento contínuo do programa, incluindo a reposição de equipamentos e insumos, remessa e realização das análises nas instituições receptoras do material. E o custo seria relativamente baixo, seja a referência uma nova endemia ou uma pandemia.
Sim, a articulação e consolidação de uma rede dessa natureza e com esse fim não é um desafio trivial. Mas com certeza é um desafio pertinente e urgente e, por isso, deve ser tentado. Se não for por iniciativa de algum governo, que comece a ser tratada por iniciativa dos técnicos e instituições potencialmente envolvidos.
Bora começar?
A rede pode começar pequena e depois se agigantar, mas é necessário começar. A morte de tantas pessoas em virtude do que não fizemos ou não sabíamos durante a pandemia e de todos os animais que morrem em nossas estradas precisam nos ensinar algo. A próxima onda certamente virá. Ainda que não possamos prever quando, podemos agir de forma que ela seja menos persistente, perturbadora e destruidora que a atual.
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