Bióloga, mestra em Biologia Animal e doutoranda em Biologia pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia: Diversidade e Manejo de Vida Silvestre na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
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Recentemente, um grupo de pesquisadores latino-americanos descreveram a aranha de número 50 mil. Você deve estar se perguntando como isso é possível. Atualmente, existe um sistema on-line de consultas a trabalhos relacionados a descrições de aranhas, o World Spider Catalog, e nele estão artigos de descrições de espécies de aranhas do mundo! Segundo alguns autores aracnólogos, existe uma perspectiva de que existam 150 mil espécies de aranhas, ou seja, os aracnólogos do mundo todo conseguiram alcançar um terço do total da diversidade de aranhas global que se acredita existir.
O Museu de Bern (Suíça) realizou uma reportagem referente a esse marco científico para a aracnologia. A espécie de número 50 mil é uma aranha da família das papa-moscas (Salticidae), que são reconhecidas por terem grandes olhos anteriores médios. Não tecem seda para capturar seus alimentos, ou seja, são caçadoras por emboscada. Além disso, as aranhas dessa família não oferecem qualqualquer risco a nós, seres humanos. A Salticidae é a maior família de aranhas em termos de números de espécies conhecidas, sendo mais de 6 mil.
O nome dado a aranha de número 50 mil foi Guriurius minuano e foi designado por mim e meus colegas de pesquisa Abel Bustamante, Gustavo Ruiz e Everton Rodrigues. A nomenclatura de uma espécie é composta por dois nomes, num sistema nomenclatural com regras. A etimologia da espécie traz no gênero Guriurius a junção de duas palavras “guri”, que significa menino. Já “minuano” faz uma homenagem a povos indígenas originários do sul da América do Sul, os minuanos, e que significa vento. Ventos esses provocados por massas polares oriundas do sul e que atingem a área de distribuição geográfica da espécie, na Argentina, Brasil e Uruguai.
A área da Biologia na qual esse trabalho foi realizado é denominada de Taxonomia. Esse campo da Ciência tem como objetivos conhecer e descrever a biodiversidade. A história da taxonomia se inicia com filósofos que refletiam sobre os organismos e como poderiam organizá-los de forma sistemática. Posterior a esses primeiros pensadores, o naturalista Carl Linnaeus criou um sistema de organização funcional dividido em Reino, Filo, Classe, Ordem, Família, Gênero e Espécie, publicado no Sistema Naturae e que é utilizado até hoje.
Pode-se chegar neste ordenamento e descrição de táxon através de diferentes técnicas científicas. No trabalho taxonômico com a Guriurius minuano, foi utilizado conceito morfológico de espécie, o que torna necessária a descrição de uma série de partes da morfologia da aranha. Além de muitas fotografias, ilustrações e métricas, tanto do corpo quanto das genitálias. Isso mesmo que você leu! As genitálias em aranhas são uma das métricas utilizadas na designação de espécie. O palpo (masculino) e epígino (feminino) da espécie Guriurius minuano Marta, Bustamante, Ruiz & Rodrigues, 2022 foi descrito em todos os parâmetros morfológicos.
Além dessas métricas, pode-se observar a espécie in vivo, com os registros do autor uruguaio Damián Hagopián (veja fotografia). Essa espécie não possui mais do que três milímetros de comprimento, é de coloração amarelada e possui manchas marrons no abdómen (veja fotografia). Nesse mesmo trabalho, descrevemos a espécie Guriurius nancyae (cinquenta mil e um), em que “nancyae” é uma homenagem à pesquisadora e aracnóloga Nancy Lo-Man-Hung, que mantém uma luta por questões de gênero e fundou o Support Woman in Arachnology. Ela também foi a mulher e cientista que me incentivou nos estudos aracnólogicos. Trazer o viés de gênero científico para artigos de taxonomia é mais uma forma de mostrar que mulheres estão atentas à luta oriunda e intrínseca desde os primórdios de uma sociedade machista. É sabido também que homens aracnólogos são muito mais homenageados na Aracnologia do que mulheres aracnólogas. É uma luta social por equidade.
A observação do mundo natural é um aspecto intrínseco do ser humano. A curiosidade é aguçada desde que somos bebês e querer responder e organizar o mundo material é natural do comportamento humano. Na Taxonômica não é diferente. Por ser uma ciência base, de reconhecimento dos seres vivos, ela carrega consigo um papel fundamental na perspectiva de biodiversidade e na conservação de espécies. A importância de um trabalho de taxonomia envolve além da Ciência, também a cultura. Muitas vezes, os trabalhos descritivos e taxonômicos, quando envolvem uma linguagem acessível, popularizam a Ciência e a importância de aranhas, por exemplo.
O boom do conhecimento da aranha de número 50 mil, reportado em diversos meios de comunicação, trouxe consigo a importância da Taxonomia e de que nem toda aranha tem importância médica. Que muitos desses animais trabalham em prol dos seres humanos, seja no controle biológico em meios urbanos, se alimentando de moscas e mosquitos, por exemplo, no controle de pragas agrícolas ou na produção de medicamentos através de proteínas estudadas dos seus venenos, por exemplo. Além disso, o reconhecimento e a popularização de um assunto que gera fobia em muitas pessoas pode salvar diferentes tipos de vidas através de uma identificação correta de espécies, papel designado a um taxonomista!
Referências
– World Spider Catalog (2022). World Spider Catalog. Version 23.0. Natural History Museum Bern, online at https://wsc.nmbe.ch, accessed on {23.05.2022}. doi: 10.24436/2
– Marta, K. S., Bustamante, A. A., Ruiz, G. R. S., Teixeira, R. A., Hagopián, D., Brescovit, A. D., Valiati, V. H. & Rodrigues, E. N. L. (2022). A new huriine genus and notes on morphological characters (Araneae: Salticidae: Salticinae). Zootaxa 5124(4): 431-457.
– Knapp, S. (2010). What’s in a name? A history of taxonomy. The Natural History Museum.
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