Casal que há mais de 30 anos viaja até os lugares mais remotos do Brasil para fotografar a natureza. São adeptos da ciência cidadã, ou seja, do registro e fornecimento de dados e informações para a geração de conhecimento científico
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Estávamos assistindo ao programa Globo Repórter em março de 2016, quando vimos uma reportagem sobre o pica-pau-do-Parnaíba (Celeus obrieni), espécie que havia sido “redescoberta” em Tocantins após 80 anos sem ser observada. No programa, o biólogo André Grassi explicava sobre a distribuição e o habitat da ave no Tocantins e com a equipe de reportagem buscavam pelo menos um indivíduo para a filmagem. Esse foi o gatilho para incluir o Tocantins no topo de nossa lista de viagens.
Fizemos contato com o André Grassi e combinamos nossa viagem para novembro daquele mesmo ano. Com base na nossa lista de espécies, ele planejou nossa expedição pelo oeste de Tocantins, tendo como roteiro as cidades de Lagoa da Confusão, Pium (Canguçu), Couto Magalhães, Dois Irmãos do Tocantins e Palmas (Taquarussu).
Fizemos o primeiro registro de uma espécie para o TO
Chegamos em Palmas, capital do Estado, e já seguimos do aeroporto para a cidade Lagoa da Confusão, próxima ao Parque Nacional do Araguaia. No caminho, já fomos parando e fazendo alguns registros de aves nas estradas. Ficamos hospedados na Pousada da Praia Alta, que fica em uma fazenda, um lugar delicioso às margens do Rio Formoso e próxima a várias plantações de arroz. Fomos muito bem recebidos pelo proprietário, Sr. Eloi, que nos ofereceu um saboroso jantar, acompanhado de uma boa prosa. Fizemos registros de várias espécies, destacando o chorozinho-de-bico-comprido (
Herpsilochmus longirostris), a choca-canela (Thamnophilus amazonicus), o vite-vite-de-cabeça-cinza (Hylophilus pectoralis), a maracanã-de-colar (Primolius auricollis), o rapazinho-carijó (Bucco tamatia), o pica-pau-ocráceo (Celeus ochraceus) e a marreca-caneleira (Dendrocygna bicolor), que foi o primeiro registro fotográfico para o estado do Tocantins.
O ponto alto da expedição
Da Lagoa da Confusão, seguimos viagem para a cidade de Pium, que para nós foi o ponto alto dessa expedição. Após uma longa viagem, chegamos ao entardecer no Centro de Pesquisas Canguçu, onde ficamos hospedados. Já na chegada, ficamos impressionados com a beleza da construção – uma grande palafita com muito estilo.
O Centro de Pesquisas Canguçu fica em frente a ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, localizada entre os rios Javaés e Araguaia. A ilha tem uma parte que é um parque nacional não habitado e outra parte é um parque indígena. Nessa região, os biomas Cerrado e Amazônia se encontram e com isso vimos espécies desses dois biomas em um único local.
O amanhecer ali é incrível. No meio da mata, na beira de um grande rio, em frente a ilha do Bananal e ao som de centenas de pássaros…
Passarinhamos nos arredores do Centro de Pesquisa, que tem uma mata primária com muitas espécies.
Passarinhamos nas pequenas prainhas de areia da ilha – uma experiência única, um lugar sem presença humana e com uma natureza quase que intocável –, um privilégio. Lá fizemos o registro do difícil e inquieto joão-do-araguaia (Synallaxis simoni). Passarinhamos de barco no rio Javaés, parando tanto nas margens da ilha quanto nas margens de Pium. Nesses passeios de barco, fizemos o registro de duas espécies que estavam na nossa lista de sonhos: o pato-corredor (Neochen jubata) e a bela garça-da-mata (Agamia agami).
A Susana registrou em Pium uma nova espécie já comprovada por exame de DNA e que está em processo de publicação. Atualmente é ainda chamada de curutié (Certhiaxis cinnamomeus), mas deverá brevemente receber novo nome.
Foram muitos registros, destacando: o sebinho-rajado-amarelo (Hemitriccus striaticollis), o uirapuruzinho (Tyranneutes stolzmanni), o pica-pau-de-garganta-pintada (Piculus laemostictus), o chororó-de-Goiás (Cercomacra ferdinandi), o picapauzinho-avermelhado (Veniliornis affinis), o canário-do-Amazonas (Sicalis columbiana), o bacurau-de-cauda-barrada (Nyctiprogne leucopyga), o arapapá (Cochlearius cochlearius), o pretinho-do-igapó (Knipolegus poecilocercus), o bico-chato-de-rabo-vermelho (Ramphotrigon ruficauda), o flautim-marrom (Schiffornis turdina) e o arapaçu-barrado-do-Xingu (Dendrocolaptes retentus).
O encontro que tanto esperávamos
Nos despedimos do Canguçu e pegamos a estrada para Couto Magalhães e Dois Irmãos do Tocantins, onde nossa principal meta era o pica-pau-da-Parnaíba. Nesse caminho, paramos em uma fazenda para almoçar e fazer alguns registros. Fomos recebidos com muito carinho e conhecemos um pouco da realidade brasileira. A propriedade não tinha energia elétrica, as carnes eram conservados ainda na banha de porco, o gerador a diesel era ligado apenas duas horas na noite e os donos, com mais de 70 anos, trabalhavam diariamente na lida com o gado.
Nesse trajeto, tivemos a sorte de encontrar o pica-pau-do-Parnaíba por três vezes – algo não muito comum. Fizemos lindos registros dessa ave que foi a motivadora de nossa viagem.
O pica-pau-do-Parnaíba está classificada como “Em perigo” na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. Ela se alimenta quase que exclusivamente de formigas que vivem dentro das hastes da Guadua paniculata, uma espécie de bambu característico do Cerrado. O fato de a ave ter sua dieta baseada em um único tipo de alimento faz dela uma espécie com poucos indivíduos e com grande risco de extinção. O desmatamento com a redução ou eliminação desse tipo de bambu provavelmente acarretará no desaparecimento dessa espécie. Nessa viagem, encontramos vários locais sendo desmatados, alguns inclusive com correntão. Passando de carro, vimos uma área enorme com vários pequizeiros, que são protegidos por lei, derrubados com suas raízes para cima – uma imagem chocante.
Esse mundo é pequeno demais
Seguindo viagem, retornamos para Palmas e nos hospedamos no Hotel Fazenda Ecológica no Taquarussu. Foram dias muito agradáveis – prosas com pitadas de mistérios pra lá de boa com a proprietária Sra. Astéria e sua filha Ana Paula, que nos receberam com muito carinho. Em uma das prosas, descobrimos que a Sra. Astéria era tia de primas do Wagner – Oh, mundo pequeno! Ali fizemos muitos registros interessantes, dentre eles o uirapuru-cigarra e um casal do anambé-una, que nos presenteou com belas poses.
Foi uma expedição inesquecível, em que vivemos momentos maravilhosos com grande aprendizado cultural. Foi gratificante conhecer de perto como vivem as pessoas no interior do Tocantins. Em sete dias de expedição, rodamos 1.200 quilômetros e registramos 338 espécies, que só conseguimos com o conhecimento e a dedicação do amigo André Grassi. Uma viagem que merece ser repetida.
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