Por Andreas Kindel
Biólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
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A perereca-macaca (Phyllomedusa distincta) é uma espécie que pertence a um gênero que, como o nome popular dá a entender e a figura abaixo ilustra, tem um comportamento muito distinto de outros grupos de pererecas. Seu deslocamento é relativamente lento, as passadas parecem desajeitadas e a forma de se agarrar aos finos ramos se assemelha àquela utilizada pelos primatas, com o auxílio de um dedo “opositor”.
Além desse modo de locomoção ímpar, os animais dessa espécie também têm um hábito reprodutivo relativamente incomum e laborioso. Pacientemente, eles constroem um ninho em folhas largas e dobradas de uma arvoreta com localização cuidadosamente escolhida sobre uma poça de água em meio à floresta. Ali, depositam os ovos e ocorre a sua fertilização. Após o desenvolvimento inicial pendurados nas alturas, os girinos mergulham nas poças abaixo que se formaram após as chuvas mais fortes. Não por acaso esse é um grupo de pererecas com densidades pequenas e ameaçada de extinção em algumas regiões. A personagem principal deste artigo, no caso, está na categoria “em perigo” de extinção (a segunda mais preocupante) no Rio Grande do Sul.
Um dos poucos lugares de ocorrência conhecida da espécie no estado é a Reserva Biológica (Rebio) da Mata Paludosa, uma pequena unidade de conservação no município de Itati com aproximadamente 272 hectares. Acontece que o principal sítio reprodutivo identificado na área fica a menos de 20 metros da rodovia RSC453-ERS486, um trecho da rodovia conhecida como Rota do Sol, que liga a serra gaúcha ao litoral. São milhares de veículos que circulam diariamente por essa estrada que corta a reserva ao meio em uma extensão menor que um quilômetro. Obviamente que não foi a perereca-macaca que escolheu esse local desprivilegiado. Foi a estrada que foi implantada com um traçado inadequado nesse trecho.
A Rebio não existia quando em 1990, sem autorização do órgão ambiental, os empreiteiros rasgaram o remanescente de floresta paludosa ao meio. Após denuncia do meu colega Paulo Brack, esse fato resultou na inviabilização judicial da rodovia como um todo. Somente ao final da década de 1990 foram feitos novos estudos de avaliação de impactos ambientais e reiniciadas as obras, entregues em 2007. Nesse nova concepção, a estrada recebeu uma série de melhorias visando a redução de impactos ambientais (túneis, viadutos, passagens de fauna) e foram criadas três unidades de conservação como medida compensatória. Além da Rebio, foi criada a Estação Ecológica de Aratinga (5.882 hectares) e a Área de Proteção Ambiental (APA) da Rota do Sol (5.4670 hectares).
Mas a perereca-macaca e outras dezenas de espécies de anfíbios conhecidas para a Rebio não estavam protegidas. Aquele corte indevido na floresta de anos atrás, bem ao lado do sítio reprodutivo, agora estava asfaltado. E apesar da existência de três grandes passagens de fauna (3-4 metros de largura e 1,5 a 2,5 metros de altura), em uma extensão de menos de 100 metros que tangencia o sítio reprodutivo, era fácil contar as dezenas os anfíbios mortos, sobretudo em períodos pós-chuva. Essa constatação deu início a um debate, ainda em 2012, no âmbito de uma ação civil pública aberta pelo Ministério Público Federal, sobre um termo de referência do Ibama para que fossem elaborados os estudos que subsidiassem a decisão pelo cercamento ou não da rodovia ao longo no seu trecho que corta a reserva.
Na primavera-verão de 2017-2018, os estudos foram finalmente realizados e demonstraram que 90% dos vertebrados mortos naquele trecho da rodovia eram anfíbios. No total, 24 espécies foram registradas atropeladas, incluindo a perereca-macaca e as outras três espécies ameaçadas com ocorrência na Rebio. Foram quase mil indivíduos de anfíbios registrados mortos nos seis meses de monitoramento em apenas um quilômetro de rodovia – considerando a detecção e persistência das carcaças, as estimativas de fatalidades para esse período passaram de sete mil. Embora o número estimado de pererecas-macaca tenha se aproximado de 100 indivíduos atropelados, isso representou em torno de 10% da população reprodutiva estimada para esse local. Ficou evidente que algo precisava ser feito, mas o desafio não era trivial: afinal, como bloquear o acesso de pererecas, capazes de saltar e escalar quase todo tipo de superfície, à rodovia?
Passados mais três anos, após inúmeras negociações, experimentos, trâmites burocráticos e outras dificuldades administrativas, está sendo implantado neste momento o que acreditamos ser primeiro conjunto de medidas especificamente planejadas para mitigação de fatalidades de pequenos vertebrados, em especial anfíbios, no Brasil. Trata-se de seis passagens de fauna de fauna desenhadas para esse tipo de fauna pela fabricante alemã ACO, interligadas por cercas fabricadas pela inglesa ANIMEX. O próximo janeiro será um mês especial, quando finalmente avaliaremos se o sistema funciona já que, até onde sabemos, sua funcionalidade nunca foi testada com uma fauna tão rica em espécies de pererecas.
Essa é uma história lentamente construída por inúmeros episódios de confrontação e cooperação entre um grande número de instituições e técnicos. À medida que avançamos no conhecimento e nas relações de confiança, o projeto foi se concretizando. Sem a intervenção de todos, de forma voluntária ou provocada, a realidade que finalmente se concretiza não seria possível. Estiveram fortemente envolvidos o empreendedor (DAER-RS), o órgão licenciador (NLA- IBAMA-RS), o órgão gestor (SEMA-RS, através da chefia unidade e da Divisão de Pesquisa) que apoiou os estudos, o conselho consultivo da Rebio, que continuamente cobrou providências dos responsabilizados no processo judicial, a consultora ambiental (BIOLAW) que desenvolveu os estudos que culminaram no sistema de mitigação, duas ONGs (o Instituto Mira-Serra que provocou a ação civil pública e o Instituto Curicaca, que exercitou o controle social durante todo o desenrolar dessa história), o Ministério Público Federal e a Justiça Federal, que cobraram os estudos e a implantação dos sistemas de mitigação, o NERF-UFRGS, que deu suporte técnico a todas as instituições envolvidas, a ANIMEX, que doou material para os primeiros testes das cercas bloqueadoras e direcionadoras dos anfíbios, e a INVICTA, empreiteira contratada para implantação do sistema.
Para encerrar, este é um artigo com mensagem de esperança e perseverança. O sistema hoje em implantação corresponde a apenas mil metros, mas representa uma oportunidade enorme de demonstrar a possibilidade e a necessidade de replicação destes sistemas em inúmeras outras regiões neotropicais onde esse grupo de animais está sendo ameaçado pelas rodovias.
Finalmente, depois de 17 anos registrando fatalidades de fauna em inúmeras estradas do Rio Grande do Sul, minha expectativa para 2021 é, pela primeira vez, estimar os sobreviventes e não mais contar os mortos.
PS: esta não é uma obra de ficção. Os personagens e os fatos não foram inventados e qualquer semelhança ou analogia, mesmo que remota, com o que estamos vivendo neste país, infelizmente, também não é mera coincidência!
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